20 anos após o genocídio em Ruanda (por Ban Ki-moon)

A comunidade mundial não pode afirmar estar preocupada com tais atrocidades e não comprometer os recursos e a vontade necessários para preveni-los. Os líderes mundiais devem fazer mais para evitar o evitável, a crueldade que ocorre ante nossos olhos.

Arte: Valor Econômico
Arte: Valor Econômico

Hoje, na República Centro-Africana, líderes governamentais e comunitários estão se esforçando para ajudar o país a encontrar o caminho da paz.

Ontem, segunda-feira, dia 7 de abril, em Kigali, me uni ao povo de Ruanda para lembrar o 20º aniversário do genocídio que ainda ecoa por todo um arco de incertezas na região dos Grandes Lagos da África e na consciência coletiva da comunidade internacional.

Cada situação tem sua própria dinâmica. O mesmo acontece com o conflito sírio, que a cada dia faz novas vítimas. Mas cada uma delas tem suscitado um complexo desafio de vida ou morte: o que pode a comunidade internacional fazer quando inocentes estão sendo massacrados em grande número e o governo é incapaz ou relutante em proteger seu povo – ou, ainda, está entre os próprios perpetradores da violência? E o que podemos fazer para evitar que essas atrocidades inicialmente ocorram?

A comunidade mundial não pode afirmar estar preocupada com tais atrocidades e não comprometer os recursos e a vontade necessários para preveni-los. Os líderes mundiais devem fazer mais para evitar o evitável, a crueldade que ocorre ante nossos olhos

Os genocídios em Ruanda e Srebrenica foram fracassos emblemáticos da comunidade internacional. A escala da brutalidade em Ruanda ainda choca: 10 mil mortes por dia, dia após dia, durante três meses, com transmissões de ódio pelo rádio inflamando e incitando ruandeses a matar ruandeses.

A comunidade internacional tem feito importantes avanços desde então. Agora estamos unidos contra a impunidade, simbolizado pela criação do Tribunal Penal Internacional. Tribunais internacionais ou apoiados pela Organização das Nações Unidas (ONU), incluindo o Tribunal para Ruanda, estão buscando a responsabilização e tendo um efeito dissuasivo perceptível sobre os possíveis violadores de normas internacionais básicas.

A comunidade internacional aprovou o conceito da “responsabilidade de proteger”: os Estados não podem mais alegar que os crimes atrozes são um assunto interno. Um número crescente de governos e organizações regionais está criando mecanismos dedicados à prevenção do genocídio. As Nações Unidas e seus parceiros estão mais frequentemente implantando equipes de monitoramento de direitos humanos em momentos-chave – “olhos e ouvidos” que mostram aos governos e atores não estatais que o mundo está observando. E, uma vez que tais crimes ocorram, nosso alvo passa a ser os principais fatores de risco, desde a falta de instituições até as denúncias não solucionadas.

Ações enérgicas de manutenção de paz derrotaram uma das milícias mais brutais no leste da República Democrática do Congo. A ONU abriu as portas de suas instalações no Sudão do Sul para abrigar dezenas de milhares de pessoas. Há vinte anos, tais medidas teriam sido impensáveis. Hoje, esta é uma política deliberada, um exemplo da nossa nova iniciativa “Direitos em Primeiro Lugar” em ação – uma lição de Ruanda tornada realidade. Estas situações continuam frágeis, mas o impulso é claro: mais proteção, e não menos.

No entanto, há constantes contratempos. O fim da guerra civil no Sri Lanka, em 2009, levou a dezenas de milhares de mortes e uma falha sistêmica das Nações Unidas em se pronunciar e agir. Por mais de três anos, a comunidade internacional se divide sobre a resposta à situação na Síria, fornecendo apenas uma fração do financiamento humanitário necessário, ao mesmo tempo em que alimenta o conflito com armas para ambos os lados na crença equivocada de uma solução militar.

Os Estados-membros podem ter discordâncias ou receios, mas os resultados desta indiferença e indecisão são claros: o derramamento de sangue de inocentes, sociedades destruídas e, aos líderes, restando apenas declarações como “nunca mais”, mais uma vez – o que, em si, representa um sinal de fracasso contínuo.

Por uma década, a República Centro-Africana tem chamado atenção para o colapso do Estado, uma decaída rumo à ilegalidade e um macabro extermínio em massa que tem instalado o terror generalizado e provocado êxodo. Em meio ao conflito, a exploração da identidade religiosa para fins políticos ameaça uma longa tradição de coexistência pacífica entre muçulmanos e cristãos.

Faço um apelo à comunidade internacional por apoio militar urgente para salvar vidas. A União Africana e a França implantaram tropas, mas os esforços da União Europeia por uma missão de paz não deram resultados. Há uma necessidade igualmente urgente de iniciar um processo político em que a reconciliação ocupe um lugar de destaque. Qualquer eventual propagação da violência pode atingir toda a região.

Quando o colapso de um país possui tal nível de profundidade, o desafio pode parecer intransponível. Contudo, a história de países como Serra Leoa, Timor-Leste e Ruanda prova o contrário. Seguirei apoiando o governo para que a República Centro-Africana possa trilhar o mesmo caminho.

Em Ruanda, visitei o memorial do genocídio e prestei homenagem às vítimas – como tenho feito em outras tragédias que desafiaram o mundo, desde Auschwitz e Camboja até outras, contemporâneas. A comunidade internacional não pode afirmar estar preocupada com tais atrocidades e, em seguida, não comprometer os recursos e a vontade necessários para efetivamente preveni-los. Os líderes mundiais devem fazer mais para evitar o evitável, a crueldade que ocorre diante de nossos olhos.

Em todo o mundo devemos nos colocar no lugar das pessoas mais vulneráveis, da Síria à República Centro-Africana, e nos perguntar o que mais podemos fazer para construir um mundo de direitos humanos e dignidade para todos. Vamos mostrar a estas pessoas que elas não estão sozinhas ou abandonadas – e que o auxílio do qual precisam está a caminho.

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Ban Ki-moon é secretário-geral das Nações Unidas. Artigo originalmente publicado no jornal ‘Valor Econômico’ no dia 8 de abril de 2014.